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Discursos-->Adeus, CINE VENEZA! "Deus mesmo, se vier, que venha armado." -- 23/06/2001 - 13:43 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Araraquara, com seus talvez 200 mil habitantes (os números oficiais apontam, e isso já faz tempo, 160 mil), acaba de perder mais um de seus espaços públicos de lazer. Neste momento em que escrevo, o Cine Veneza já seria propriedade da Igreja Universal do Reino de Deus. É o que murmuram algumas fontes razoavelmente confiáveis.

De nada valeram os esforços ingentes, mas infelizmente tardios e ineficazes, das autoridades municipais, no sentido de impedi-lo, no sentido de encontrar, com a ex-proprietária, uma outra possibilidade de solução para a sua, dela, inadimplência. Solução que não fosse entregar o "problema", agora nosso, nas mãos de Deus, ou, para sermos mais materialistas, nas mãos de seus representantes no reino deste mundo.

Algumas horas antes de receber a informação, dada como segura, de que a venda já estaria consumada, conversei longamente com a Profa. Dra. Vera Botta, a mais votada dos vereadores eleitos nesse pleito que, pela primeira vez, colocou o seu partido, o PT, no governo da cidade. Ela achava impossível que, juntos, não conseguíssemos mobilizar a população para uma causa como esta. Juntos, arquitetávamos uma saída que, baldados os esforços das autoridades, necessariamente teria de passar por um movimento popular de resistência.

Já imaginávamos um pacote de sugestões, que achávamos capazes de tornar a fazer daquele espaço um empreendimento viável, sem descaracterizá-lo. Uma coisa era certa, ele não poderia continuar sendo apenas um cinema, com a única sessão noturna das 20:00 horas, e freqüência de público muito aquém da que seria necessária para garantir-lhe o funcionamento. Seria preciso tranformá-lo num espaço multi-uso, abrigando diversas outras atividades culturais e de lazer.

O prédio fica no ponto mais central da cidade, defronte à Câmara Municipal e à Casa de Cultura "Luis Antonio Martinez Correa", a alguns metros do prédio da Prefeitura Municipal, do Clube Araraquarense e do Hotel Municipal. Está incrustrado, poderíamos dizer, no coração da cidade. Nas proximidades encontram-se cafés, bancas de revista, cartórios, o grosso do comércio da cidade, com grande afluência de pessoas ao longo do dia e parte da noite.

O saguão do cinema, sonhávamos, poderia se transformar num Café Central, que passaria a ser um ponto de encontro prestigiado, com os políticos, empresários, comerciários, professores e estudantes universitários tendo finalmente um espaço para a necessária circulação das idéias. Poderia abrigar ainda exposições de arte, performances diversas, debates filosóficos, terminais de computador oferecendo acesso à internet, os jornais do dia, as revistas semanais, publicações culturais. Poderia se transformar, em pouco tempo, num espaço ideal para o urgente debate político, com os representantes tendo a oportunidade de se encontrar publica e regularmente com seus eleitores. A sessão comercial de cinema se manteria, no mesmo horário em que sempre se mostrou viável, com a hipótese muito provável de, mesmo essa sessão, passar a contar com maior acorrência de espectadores, pessoas que passariam a ser atraídas pelos outros atrativos do local.

Criaríamos sessões especiais, como uma sessão de cinema de arte, mas com programação mais eclética do que aquela que a Sessão Zoom ofereceu ao longo de tantos anos, criada que foi por professores e alunos da UNESP, mas que, presa talvez em demasia à idéia de um cinema europeu premiado em festivais como o de Cannes, com o tempo acabou também perdendo o seu público, estando em vias de desaparecimento definitivo, a despeito dos esforços em prol de sua ressurreição. Teria também uma sessão dedicada às crianças, com programação inteligente e orquestrada com as inteções formativas das diversas escolas. O palco do cinema poderia abrigar espetáculos de todo tipo, infantis e adultos, debates públicos, palestras, eventos empresariais, congressos, além da maior parte das atividades antes restritas aos públicos universitários nas três universidades que a cidade abriga.

O nosso sonho de resistência já conseguia divisar a mágica de um centro cultural com tal alcance ali, no coração da cidade, o que fatalmente redundaria numa mudança radical no estilo de vida dos cidadãos, com fortes conseqüências em todos os outros âmbitos da vida comunitária. Mas, como todos os outros esforços envidados, também os nossos sonhos de uma noite deste inverno do apagão terão sido sonhados com algumas horas de atraso.

É provável que, enquanto transformávamos esse sonho em palavras, na mesa de um restaurante da cidade onde se comemorava o aniversário do prefeito, a venda do Cine Veneza já fosse a dura realidade a ser assimilada a partir do dia seguinte. Assimilada? Mas como?

Na minha memória, ao ouvir a confirmação dessa notícia, a imagem do cinema satanizada noutros tempos pelos sacerdotes católicos, que chegavam mesmo, nas missas do domingo, a lançar exorcismos poderosos contra determinados filmes particularmente demoníacos. Quantos filmes não deixei de ver, porque vê-los seria um ato pecaminoso, porque colocariam em risco a minha salvação, a minha vocação cristã. Era o que me diziam. Era o que nos ensinavam no Catecismo, ao lado de recomendações para não passar sequer pela calçada das igrejas protestantes ou centros espíritas. Os filmes bíblicos, e aquela vida de Cristo na Semana Santa, chegavam a representar um certo alívio. Eram sessões às quais podíamos nos dirigir com a consciência absolutamente tranqüila, sem sentir o calor já muito próximo das labaredas do inferno. Filmes aconselhados.

Godard, com "Je vous salue, Marie", terá sido talvez a última vítima do nosso catolicismo oficialmente de fachada, com o escritor José Sarney, então presidente, a conduzir com mão firme o nosso "in God we trust" inscrito em dinheiro de pouco poder de compra.

Os tempos são outros. A notícia desse novo templo instalado agora no coração combalido de uma cidade cada vez mais distante de poder assumir os seus ideais de cidadania, cada vez menos dotada de espaços de convivência verdadeiramente públicos e democráticos, pode soar, para seus crédulos futuros freqüentadores, como as trombetas de um apocalipse de há muito anunciado e cada vez mais visível no horizonte que se avizinha e apequena. Se o cinema era o inimigo da fé e dos bons costumes, o dragão da maldade acaba de sofrer, em termos locais, um golpe certeiro, do qual talvez não consiga mais se restabelecer. E o mundo, finalmente livre do pecado, estaria devidamente preparado para a volta do filho de Deus. E, a julgar pela agressividade com que esses seus representantes terrenos expandem seus domínios, e exorcizam seus demônios, "Deus mesmo, se vier, que venha armado", como queria João Guimarães Rosa, que foi profundo conhecedor da luta entre Deus e o capiroto, e que chegou mesmo a colecionar, talvez por garantia, mais de uma centena de nomes para o dito-cujo. Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, aprendeu com seu compadre Quelemém, que é preciso beber um pouco de toda água, ou seja, não ficar comprando sempre a mesma marca de água benta pela vida afora.

O catolicismo, entre nós, deitou e rolou como religião oficial, mandou e desmandou por esse nosso imenso sertão e todas as suas veredas. Hoje amarga severas derrotas para todas as outras religiões e seitas, todas elas se multiplicando da noite para o dia, com as armas letais de um mundo tornado espetáculo em suas mínimas circunstâncias. Com a estética se sobrepondo à vida, não poderia restar mesmo nenhum espaço mais para as antigas formas de representação da vida.

Adeus, Cine Veneza! Foi bom, enquanto durou, esse nosso belo sonho terreno. Bons, enquanto duraram, esses nossos belos ideais de vida e de convivência humana. A luta pela cidadania, bandeira desta primeira prefeitura petista na cidade, esbarra agora num inimigo praticamente imbatível: a eternidade. E esta é, cada vez mais, propriedade legítima dos representantes terrenos do divino, adquirida que vai sendo, com gana incontível e, sobretudo, com a graninha suada e incontável de valentes e valorosos exércitos de dizimistas. Exércitos que, por nenhum dos prazeres deste mundo, haveriam de abrir mão de suas participações no outro: o reino de toda a glória. Aleluia!
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